A saga de posologia dos anti-hipertensivos: não é uma histórinha para dormir

MBE em Foco - Volume 9, Issue 7

Referência: Lancet. 2022 Oct 22;400(10361):1417-1425

Conclusão prática: A hora em que se tomam os anti-hipertensivos não parece afetar de maneira substancial a morbimortalidade cardiovascular.

Pílula da MBE: Diferenças significativas nas características basais entre os grupos geralmente sugerem haver um problema com a randomização. Acontece que às vezes também elas podem ser um sinal de que não houve nenhuma randomização!

Este deveria ser um MBE em foco “normal” sobre o ensaio TIME, que avaliou o momento da tomada dos anti-hipertensivos e - alerta de “spoiler” - não encontrou nenhum benefício pela posologia noturna em comparação com a posologia matinal para desfechos cardiovasculares. Mas uma pequena pesquisa para a elaboração deste boletim desvendou bastante a controvérsia em torno do antecessor do TIME, o altamente divulgado ensaio Hygia Chronotherapy, de 2020, e não apenas por causa dos seus resultados contraditórios! Embora esse possa não ser exatamente um drama do nível de Gray's Anatomy, isso é o mais próximo que chegamos na literatura médica.

A base para ambos os estudos é a hipótese de que a posologia dos anti-hipertensivos ao deitar controlaria melhor o aumento matinal fisiológico da pressão arterial e, portanto, reduziria a morbidade e a mortalidade cardiovasculares (a qual é mais provável de ocorrer nessa hora do dia). Como apontado em um MBE em foco anterior, o estudo Hygia constatou que a dosagem ao deitar esteve associada a uma "impressionante" redução de 45% nas mortalidades por todas as causas e cardiovascular. Outros especialistas escreveram que "os resultados relatados quase parecem bons demais para serem verdade (...)". Verdadeiros ou não, os resultados receberam muita atenção na imprensa leiga e nas mídias sociais com base no escore de atenção na Altimetric de 2124 que o estudo recebeu (onde uma pontuação de 20 é considerada boa para um artigo).

Os problemas trazidos sobre o ensaio Hygia resultaram em uma "expressão de preocupação" formal pelo European Heart Journal e uma investigação que acabou não encontrando "nenhum fundamento para uma preocupação ética ou factual". No entanto, muitos continuam a questionar seriamente a validade dos resultados do ensaio Hygia. Aqui estão os [supostos] problemas em poucas palavras:

  1. Há dúvidas sobre se o estudo Hygia foi realmente randomizado com base na ausência da palavra "randomizado" em qualquer lugar do estudo, diferenças estatisticamente significativas observadas em características basais importantes entre os grupos, a combinação de pacientes tratados e não tratados e a alocação separada de pacientes com base nas diferentes classes de medicação.
  2. O efeito "implausivelmente grande" do tratamento observado (redução de 45% nas mortes) superou o benefício esperado de ~20%, e foi seguido por uma expansão do estudo em vez de um término precoce mais eticamente sólido (apesar dos relatos dos autores de terem sido subfinanciados).
  3. Não há descrição de adjudicação dos desfechos, não há descrição de como o estudo foi monitorado e nenhuma verificação dos dados-fonte.
  4. Houve taxas de abandono excepcionalmente baixas (apenas 607 perdas em mais de 19.000 participantes ao longo de 6 anos), levantando suspeitas sobre falsificação de dados.
  5. Houve vários problemas no protocolo, incluindo 15 desfechos primários.

Assim, o forte histórico de ceticismo sobre a validade dos resultados do Hygia leva a talvez menos entusiasmo com os resultados contraditórios do ensaio TIME, publicado em outubro de 2022, e pode ser por isso que tenhamos demorado tanto para escrever sobre ele aqui.

A versão do CliffsNotes do ensaio TIME é assim: foi um ensaio (realmente) randomizado, controlado e aberto com mais de 21.000 adultos em tratamento para hipertensão que incluiu uma população europeia de baixo risco, majoritariamente branca, que tinha acesso à internet e um médico de atenção primária. A maioria das pessoas estava tomando seus (média de 1,5) medicamentos para a pressão arterial pela manhã, e provavelmente aderia à medicação ou tinha hipertensão leve, porque a PA média pré-ensaio foi de 135/79. Os participantes foram randomizados para tomarem todos os seus medicamentos para a PA pela manhã ou à noite e avaliados para o desfecho primário composto de morte vascular ou hospitalização por IAM não fatal ou AVC não fatal após uma média de 5,2 anos. O estudo foi bem desenvolvido para detectar uma diferença se ela existisse, mas a análise por intenção de tratar (ITT) não mostrou uma diferença significativa no desfecho primário entre os grupos. Houve mais efeitos colaterais no grupo da posologia matinal e mais abandonos no grupo da posologia noturna (presumivelmente porque os participantes estavam acostumados a tomar seus remédios pela manhã). Mas veja: houve um aumento no descumprimento da orientação de mudar da dose matinal para a noite na época em que o ensaio Hygia foi publicado, a qual aparentemente se estabilizou no final do ensaio!

Embora tenha havido uma adesão variável em ambos os grupos no ensaio TIME, houve mais trocas no grupo dos medicamentos noturnos, o que pode ter turvado um pouco as águas. Se uma análise por protocolo também tivesse sido feita e tivesse mostrado um benefício pela dosagem noturna, isso poderia ter ajudado a explicar a dramática discrepância nos resultados entre os dois ensaios (sem considerar dados fraudulentos). Para deixar claro, a ITT é preferencial nos estudos de superioridade porque preserva a equivalência prognóstica e é considerada mais próxima da "verdade". Em última análise, no entanto, a generalização do ensaio TIME parece ser seu ponto mais fraco, considerando que a população era de baixo risco e com altos recursos.

Agora, se você viveu a mesma montanha-russa de emoções sobre essa polêmica entre entre ensaios que "nós", você pode, como nós, estar mais para o lado nerd-empático do espectro. Tudo isso é um bom lembrete de que o processo de revisão por pares não é uma garantia de que o que você vê é o que você tem. Por mais deprimente que seja, temos que permanecer céticos em relação a novos estudos e fazer nossa devida diligência para procurar furos nas costuras, especialmente quando os resultados parecem "bons demais para serem verdade". A replicação dos achados importantes é fundamental.

No que diz respeito ao horário da medicação anti-hipertensiva, nosso conselho aos pacientes é que tomem seus medicamentos para pressão arterial quando tiverem mais chance de lembrar de tomá-los. Uma coisa de que podemos ter certeza é que os medicamentos para a pressão arterial tomados pela manhã, meio do dia ou à noite definitivamente não ajudarão se os pacientes se esquecerem de tomá-los.

Para mais informações veja o tópico Hipertensão na DynaMed.

Equipe editorial do MBE em Foco da DynaMed

Este MBE em Foco foi escrito por Katharine DeGeorge, MD, MSc, editora-adjunta da DynaMed e professora associada de Medicina de Família na Universidade da Virgínia. Editado por Alan Ehrlich, MD, editor executivo da DynaMed e professor associado de Medicina de Família na faculdade de medicina da Universidade de Massachusetts; Dan Randall, MD, editor adjunto da DynaMed; Nicole Jensen, MD, médica de família na WholeHealth Medical; Vincent Lemaitre, PhD, autor médico sênior na DynaMed; Elham Razmpoosh, PhD, pesquisadora associada na Universidade McMaster; e Sarah Hill, MSc, editora associada da DynaMed. Traduzido para o português por Cauê Monaco, MD, MSc, professor do curso de medicina do Centro Universitário São Camilo.